Em 2024, o Brasil conseguiu por meio de suas relações exteriores se reposicionar no cenário internacional, mostrando que é um ator pragmático em busca de consensos e capaz de dialogar com atores do norte e do sul global. Especialistas avaliam que o país marcou sua reinserção em grandes foros internacionais como o G20, mas argumentam que na América Latina os objetivos foram frustrados por episódios como a eleição na Venezuela.
Já neste ano, a perspectiva é de um cenário adverso, seja por obstáculos à implementação do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, seja pela falta de afinidade com Donald Trump na Casa Branca.
“No ano, passado o governo brasileiro deu certa continuidade ao que vinha fazendo desde o início do atual mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, isto é, reposicionar o Brasil como um ator construtivo, responsável, pragmático, que consegue construir consensos”, afirma o diplomata Antonio Freitas, subsecretário de Finanças Internacionais e Cooperação Econômica do Ministério da Fazenda.
“O Brasil retomou um papel ativo, de ator relevante no multilateralismo e também de um pouco mais de serenidade em um ambiente internacional muito conflagrado.”
Se 2023 foi marcado por um forte engajamento da diplomacia presidencial para reconstruir pontes e tirar o Brasil do isolamento no governo anterior, 2024 foi marcado por intensa atividade de contato e viagens, observam fontes diplomáticas.
Desde o início do mandato atual, o presidente Lula se encontrou com líderes de 67 países do mundo, a maioria do Ocidente, como o chanceler alemão, Olaf Scholz, com quem se reuniu sete vezes, e o presidente francês, Emmanuel Macron, com quem também esteve em sete ocasiões. Reuniu-se ainda cinco vezes com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyden.
O seu antecessor, Jair Bolsonaro, havia se reunido com 31 chefes de Estados nos quatro anos em que esteve na Presidência, segundo levantamento do jornal “O Globo”. A pandemia ajuda a explicar, em parte, o número bem menor de encontros bilaterais no governo anterior.
“O primeiro ano foi de empenho muito forte [da diplomacia presidencial]. Já o segundo, com características diferentes, foi voltado para a construção de consensos, de iniciativas e de responsabilidades que o Brasil havia assumido, como o G20”, afirma Joel Souza Pinto Sampaio, chefe da Assessoria Especial de Comunicação Social do Ministério das Relações Exteriores.
Na opinião de especialistas, na presidência do G20 o Brasil foi bem-sucedido pelo resultado da cúpula e também porque chegou a ela com aderência às prioridades que elencou durante sua presidência no grupo, como combate à fome e à pobreza e transição energética justa.
Uma marca deixada pelo Brasil no G20 foi a construção de consensos mesmo em conjunturas geopolíticas adversas, afirma Pedro Silva Barros, técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
“Depois de várias reuniões do G20 sem consenso nos últimos anos, o Brasil mostrou que é possível chegar a isso com habilidade diplomática. Logo no início, foi isolando a questão da [guerra envolvendo a] Rússia das reuniões setoriais, deixando o tema apenas para o nível político”, afirma.
“No começo, os países da Europa queriam pautar o tema da [guerra na] Ucrânia em todas as mesas. Então, a presidência exercida pelo Brasil conseguiu organizar o jogo.”
Ele observa que o tema será novamente desafiador em 2025, quando o Brasil detém a presidência rotativa do Brics.
Com o G20, Sampaio observa, o Brasil conseguiu tanto se reinserir em grandes foros internacionais quanto retomar linhas tradicionais de sua política externa.
“E um de seus fundamentos é justamente a condição de poder dialogar com todos e, a partir daí, buscar construir soluções e caminhos possíveis no mundo, que hoje está mais difícil do que nos mandatos anteriores do presidente Lula.”
Ao lado do G20, o anúncio da conclusão do acordo entre Mercosul Sul e União Europeia é visto como exemplo concreto da reconstrução de pontes na política externa brasileira, tirando o Brasil do isolamento dos anos anteriores.
O texto final leva em conta pontos sensíveis ao Brasil, como compras governamentais e inovação tecnológica e trata a questão ambiental de forma mais equilibrada do que a última versão, de 2019.
O grande trabalho em torno do acordo, contudo, se dará neste ano, afirma Barros.
“Será um trabalho duplo. Um deles é a aprovação [do acordo] dentro da própria União Europeia, o que não será fácil e que talvez nem seja o cenário mais provável”, diz.
“Além disso, o Brasil tem de correr para preservar o espaço que será perdido no comércio intrarregional com o acordo. Por isso é importante que acelere a agenda de facilitação de comércio com instrumentos de crédito e de pagamentos próprios, como o Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos, e robustez macroeconômica, como o Fundo Latino-Americano de Reservas.”
Um ponto que ficou aquém das expectativas em 2024 foi a atuação do Brasil na América Latina, afirmam fontes que acompanham o tema.
Depois da reunião de presidentes sul-americanos, em maio de 2023, que deu fim a um hiato de nove anos desse tipo de encontro e sinalizou a região como prioridade de política externa do Brasil, o governo Lula passou a conviver com o presidente argentino, Javier Milei, de extrema direita, e se frustrou com a confiança depositada no processo eleitoral da Venezuela.
O pleito ocorreu no fim de julho, mas, de certa forma, paralisou a agenda sul-americana no segundo semestre. O resultado da eleição foi contestado por alguns líderes regionais, o que resultou na expulsão de sete embaixadores e diplomatas da América Latina de Caracas. A atual fragmentação regional, diz Barros, será um problema para a integração.
“Isso exigirá do Brasil uma capacidade de gerar consenso em situações quase extremas na região. Será muito difícil manter agendas positivas com Venezuela e Argentina, ao mesmo tempo. O desafio será manter o Consenso de Brasília em temas setoriais como infraestrutura, defesa e gestão de riscos de desastres naturais em meio a maior polarização entre os presidentes e fragmentação”, diz, ao mencionar o documento que define a integração regional e o combate às mudanças climáticas como prioridades para a região nos próximos anos.
Em sua avaliação, um caminho viável seria tentar vincular temas de integração regional na América do Sul com agendas prioritárias do Brics, como energia e finanças.
Frente à dualidade China e Estados Unidos, o Brasil manteve em 2024 relação estável com o governo americano de Joe Biden, enquanto estreitou laços com os chineses.
Na visita do líder chinês, Xi Jinping, a Brasília, no fim de novembro, os países anunciaram aprofundamento das relações, com vistas à maior cooperação em áreas como infraestrutura, ainda que o Brasil tenha preferido não integrar a Nova Rota da Seda.
Sampaio observa que dialogar com atores fora do Ocidente não é um problema, mas uma virtude. Ele questiona a ideia de que, ao se aproximar da China, o Brasil estaria antagonizando com o Ocidente e afirma que o Brasil é capaz de unir interesses de diferentes regiões e orientações geopolíticas.
“E ele consegue fazer isso justamente porque tem a vantagem de dialogar com todo mundo. Dialogar com atores de fora do Ocidente não é uma desvantagem, é uma vantagem. E isso voltará à pauta neste ano, com o Brasil presidindo o Brics.”
Mais além da China, estão no foco do governo Lula a aproximação com países do Golfo Pérsico e do Sudeste Asiático, duas frentes nas quais a chancelaria brasileira se empenhou em 2024.