Eu pensei que, no nosso primeiro encontro, Paulo Sérgio Almeida ia estar de terno, gravata, bigode e muito sério. Eu tinha sete anos e era o que, para mim, pedia aquela ocasião em que eu, finalmente, iria conhecer o namorado da minha mãe: um mínimo de seriedade. Mas minhas expectativas logo se frustraram. Ele estava com um short, talvez fosse até uma samba-canção, uma camiseta velha de um filme que se chamava “Faca de dois gumes” e um chinelo. Os cabelos todos cacheadinhos e óculos vermelho. E ainda por cima, para completar toda aquela informalidade, todo mundo o chamava de Paulinho! Paulinho! Ou seja, uma grande decepção!
Foi assim que minha história com ele começou. E todos os que estão aqui hoje, lendo esse texto, também têm uma história com ele que começou, assim como a minha, algum dia desses, dos últimos 80 anos. Não posso falar por vocês. Só posso falar por mim. Mas tenho certeza de que vocês vão reconhecer, no meu Paulinho, pelo menos alguns traços do Paulinho de vocês.
Depois desse dia, do primeiro encontro, a decepção passou rápido e não demorou muito para que virássemos uma família. E que eu adotasse, à revelia da biologia e das leis, Paulinho como pai. E me dispusesse a, como filha, receber o que ele poderia me dar. Pouco a pouco, ele foi me ensinando a tirar o terno e a gravata de todas as coisas, pensamentos, afetos e, principalmente, das expectativas. Olhar para a vida e querer algo, desejar. Desejar, desejar com força, trabalhar para isso, desejar de novo, trabalhar mais, desejar, desejar e desejar. Eu tentei aprender. Fiquei ora observando, ora imitando.
Vi ele amar os cavalos no Jockey. Vi seu filme Dá-lhe, Rigoni! Vi ele amar o Flamengo. Vi seu filme Sobrenatural de Almeida. Vi ele amar sua cidade, Petrópolis. Vi Banana Split. Vi ele amar o trabalho. Vi tantos filmes. Vi ele amar a informação. Vi nascer e crescer a Filme B. Vi ele amar a minha mãe. O meu irmão Pedro. E depois seu filho Bernardo, com loucura. Vi ele amar viajar. Ir a festas, à piscina, à cachoeira. Vi ele amar comer, fumar e beber. Vi ele amar sua família e seus amigos. Vi ele amar os meus amigos e minha família. E vi todas essas coisas atravessadas pelo cinema. Principalmente, vi ele atravessar e ser atravessado pelo cinema brasileiro. Por isso é impossível falar do Paulinho sem falar de tudo que ele fez como profissional amante que foi dessa loucura que é o audiovisual neste país (e no mundo).
Ele me ensinou desde o número de salas que tinha no Brasil em 2005 (2045, hoje são 3505) até a como cuidar dos meus cabelos cacheados, passando também por como abordar um famoso na rua para conseguir um autógrafo quando era criança, que era a mesma técnica de como abordar alguém importante do mercado num festival para conseguir uma notinha. Também me ensinou a trabalhar em equipe, a fazer da Filme B uma família, e que qualquer coisa era para eu perguntar para a Beth (Ribeiro), que ela sabia tudo. Ou para o Pedro (Butcher), ele também sabia tudo.
Não sei se todo mundo sabe, mas é impressionante todas as posições que ele ocupou, os cargos e trabalhos que teve e também que inventou: foi criador e programador de um cineclube em Petrópolis, foi assistente de direção, do Cacá, do Jabor, do Neville. Foi diretor. Produtor. Distribuidor. Presidente da Riofilme. Ator de publicidade (vale a pena procurar no Youtube!), fotógrafo de cinemas pelo mundo, fotógrafo de festivais pelo mundo, jornalista, inventor de formas de contar os números do cinema brasileiro e, com certeza, mais alguma coisa que eu não sei ou estou esquecendo.
Renato Hermsdorff

Alguns dos muitos integrantes que fizeram parte da história da Filme B
Mas quando eu perguntei para ele como ele começou sua carreira, ele me disse que foi como caçador de moscas. Ele me contou que chegou uma produção em Petrópolis para rodar um filme. Não lembro qual. E ele, amante de cinema e conhecedor da cidade, acompanhou a produção como uma espécie de cicerone informal. Quando chegou a hora de rodar e o diretor disse “ação”, o set estava cheio de moscas. E, prontamente, ele se dispôs a caçá-las. No fim do dia estava contratado. E como alguém que escapa com o circo, ele escapou com o cinema. Eu nunca soube se era verdade. Mas quando estávamos na piscina ou num churrasco, eu podia comprovar que ele realmente caçava moscas muito bem. Tinha muita técnica e um estudo de anos ali. E embora nunca tenha conseguido aprender, decidi acreditar. Além do mais a história era boa.
Foi em um Filme B que li pela primeira vez a pergunta: o cinema é arte ou é indústria? E comecei, a partir daí, a desvendar alguns mistérios do mercado e entender que outros ficariam ocultos para sempre. Hoje me pergunto: Paulinho era arte ou era indústria? Seu amor pelos filmes mais esquisitos e revolucionários conviviam, no seu coração, com seu amor pelos filmes mais comerciais. Como diretor, suas pretensões artísticas conviviam ou se alternavam com suas pretensões de bilheteria. E quando uma vez perguntei para ele: qual filme você gosta? Que tipo de filme é seu preferido? Ele me respondeu: eu gosto de filme bom. Filme bom? Mas o que é um filme bom?, quis saber. Filme bom é filme bom, respondeu, deixando, de propósito, o espaço para o mistério da beleza.
Não muito depois daquele dia do nosso primeiro encontro, ele dirigiu Sonho de verão. E me levou para um set pela primeira vez. Há uma semana mais ou menos, uma cópia remasterizada do filme foi exibida numa sessão especial no Estação NET Botafogo. A sessão foi dedicada a ele, que já estava hospitalizado. Eu fui com meus filhos e minha amiga irmã e também amiga dele, Alice Gomes. No dia seguinte mostrei a ele os vídeos que fiz com meu celular. As gargalhadas do público e os aplausos. Ele agradeceu, adorou. Riu, feliz. A vida, o destino, deus ou como a gente quiser chamar quis que nossa história começasse e terminasse com Sonho de verão. E fomos nós dois, eu e ele, e minha mãe, e meus irmãos, que fizemos que as nossas vidas fossem quase sempre um sonho de verão.
Eu escrevo desde criança, prosa e poesia. Mas o que mais escrevo são roteiros. Pisei no cinema com ele e por aqui fui ficando. E hoje eu me pergunto: o que eu amo mesmo é o cinema? Ou é o cinema do Paulinho? Já não sei se posso dissociar. Nem sei se me interessa. Mas sei que a ele devo não só o amor, mas também o cinema. E queria agradecer, por isso, publicamente. Não só por mim, mas também pela minha mãe e meus irmãos. Obrigada pelo amor e pelas histórias, de cinema e da vida.
Paulo Sérgio Almeida faleceu na última quinta-feira, 14. Seu grande projeto e legado, a Filme B, seguirá com o empenho de sempre, sob o comando de seu sócio e amigo Rodrigo Saturnino Braga, da parceira e sócia Cristina Siaines e do filho, redator e sócio Bernardo Siaines.
A missa de sétimo dia acontece na quinta-feira, 21, às 17h30, na Paróquia São José da Lagoa (Av. Borges de Medeiros, 2735 – Lagoa).