Denzel Washington não é considerado um dos maiores atores de todos os tempos por qualquer motivo – e, ao longo de sua prolífica carreira, alcançou sucesso em diversas áreas da criação artística. Não é surpresa que ele tenha ganhado duas vezes o Oscar de Melhor Ator por suas aclamadas performances nos filmes ‘Tempo de Glória’ e ‘Dia de Treinamento’, além de ter eternizado atuações inenarráveis em ‘Malcolm X’, ‘Um Limite Entre Nós’ e ‘A Tragédia de Macbeth’ (cada projeto revelando ainda mais um lado de sua invejável versatilidade). Agora, Washington está de volta ao cenário cinematográfico com o antecipado ‘Luta de Classes’, que chegou recentemente ao catálogo da Apple TV+.
Reunindo o astro com o prestigiado diretor Spike Lee, com quem já trabalhou em diversos longas-metragens, a trama funciona como um remake modernizado do clássico ‘Céu e Inferno’, de Akira Kurosawa, e traz Washington como David King, um magnata da música que é conhecido no cenário fonográfico pelos “melhores ouvidos da indústria”. Fundador do Stackin’ Hits Records, o império da música que construiu passa por alguns problemas e o compele a fazer o possível para comprar as ações de um dos membros majoritários da companhia, colocando, inclusive, seus ativos próprios como garantia de que o negócio seja fechado. Porém, à medida que tenta salvar o legado que deixou, David se vê no centro de uma perigosa artimanha que envolve o sequestro do filho, Trey (Aubrey Joseph), pelas mãos de um criminoso que exige um alto pagamento em troca da soltura do jovem.
Entretanto, as coisas ficam ainda mais complicadas quando David descobre que Trey havia sido sequestrado ao lado do melhor amigo, Kyle (Elijah Wright), filho do braço-direito e amigo de David, Paul (Jeffrey Wright). Confundindo os dois jovens, Trey é libertado, deixando Kyle à mercê dos terroristas e colocando David em um beco sem saída: de um lado, Paul pede ao magnata que pague o resgate para salvar Kyle; de outro, ele sabe que, se fizer isso, será obrigado a declarar falência de sua produtora, impedindo-o de continuar a dar chances para jovens artistas negros conseguirem seu lugar na indústria fonográfica. A partir daí, ele luta contra o tempo e é forçado a ponderar qual tipo de marca deseja, de fato, deixar no mundo.
Assumindo a cadeira de direção, Lee mantém-se firme a estéticas e a temáticas exploradas em produções anteriores – principalmente no tocante às relações raciais que regem a sociedade -, mas abre espaço para uma mistura entre suspense e drama que aposta mais fichas no entretenimento do que na reflexão discursiva. Em outras palavras, o cineasta deixa de lado a profundidade narrativa que explorou em incursões como ‘Destacamento Blood’ e ‘Infiltrado na Klan’ e abraça convencionalismos do gênero à medida que os rearranja sob uma ótica urbana que esquadrinha lados diferentes da vibrante cidade de Nova York. E, aliando-se ao roteiro de Alan Fox, Lee constrói um sólido projeto que cumpre com o prometido, mesmo que não explore todo o potencial que carrega.
O comando do diretor funciona como uma convergência entre a homenagem estilística ao icônico longa eternizado por Kurosawa e uma análise simplória e mais tradicional sobre a complexidade do show business – arquitetando um universo pautado menos no espetáculo visual e mais nas intrincadas ramificações familiares e intimistas entre os personagens. Dessa maneira, Washington tem liberdade o suficiente para trilhar uma trajetória quase testamentária, trazendo explorações de projetos anteriores, como ‘O Protetor’ e ‘Gladiador II’, para fomentar a controversa e implacável personalidade de David.
A poderosa presença de Washington é o bastante para ofuscar certos deslizes que aparecem e aqui ali, como escolhas de edição que não têm muito propósito e quebram o ritmo da narrativa, e diálogos fracos erguidos em metáforas óbvias. Além disso, o astro é acompanhado de um time de performers que se joga de cabeça em seus respectivos papéis, com destaque aos Wright, a Joseph e a nomes que incluem A$AP Rocky e Ilfenesh Hadera. E, considerando que a base narrativa do filme tem como protagonista a música em si, é necessário mencionar a ótima trilha sonora de Howard Drossin, que cria microcosmos conflitantes ao rearranjar composições orquestrais em uma progressão dissonante e inesperada.
‘Luta de Classes’ pode não ser o melhor filme do ano, mas com certeza acerta nos pontos principais e se beneficia de um comprometimento notável de todas as partes envolvidas. Mais uma vez, a parceria entre Lee e Washington colhe frutos saborosos e que escondem seu trunfo em sutilezas imperceptíveis – por mais que essas sutilezas, às vezes, se levem muito a sério.