O presidente do grupo dos 54 países africanos, Richard Muyungi, foi o porta-voz da insatisfação dos países mais pobres do mundo, o bloco dos em desenvolvimento, e também dos países ricos, com a falta de oferta de acomodações em Belém para a COP30, e o abuso dos preços praticados pela rede hoteleira e donos de imóveis.
“A questão, para nós, não é sobre quartos, mas sobre inclusão. Estamos falando de multilateralismo e não de restringi-lo ainda mais”, diz.
Na reunião do Birô da ONU Clima, mais conhecida como UNFCCC, a insatisfação com a logística em Belém foi o estopim de uma crise grave para a COP30. Muyungi, que é vice presidente do Birô, diz que convocou a reunião para que os países pudessem entender o que está acontecendo quanto aos preparativos da conferência, em novembro, em Belém.
Diz que, como ele, que é “chair” do grupo dos países africanos, outros presidentes de outras regiões do mundo estão em dúvida. Três destes grupos –África, América Latina e o das nações insulares— pedem que a COP não aconteça em Belém, se o problema não for resolvido.
Ele explica: “É óbvio: se os quartos não são adequados e em número suficiente, não podemos ter uma COP ali (em Belém). E a questão, para nós, não é sobre quartos, mas sobre inclusão”, repete. “Precisamos garantir a inclusão. E isso quer dizer mídia, sociedade civil, delegados, jovens. Portanto há que haver quartos suficientes para garantir que todos sejamos incluídos no processo e a preços acessíveis. Este é o nosso ponto central.”
Ele continua: “A maioria das COPs oferece um mix de acomodação e de preços variados”, explica. “O problema que estamos tendo com a COP30 é na definição do padrão mínimo. Estamos contestando que todos têm que pagar, no mínimo US$ 100. Se alguém só tem US$ 50 para gastar por dia, esta opção tem que existir”, diz ele.
Na reunião foram feitos muitos questionamentos: porque se fala em 50 mil pessoas indo a Belém, mas, ao fazer as contas, faltam 20 mil quartos? Haverá tempo para criar estes 20 mil quartos? Por qual motivo os quartos devem ser pagos com antecedência e não há garantia de restituição do dinheiro? Qual o motivo de os quartos exigirem ao menos 10 dias de locação se há pessoas que só ficam cinco dias? Como ficam os delegados de países africanos sem litoral e não acostumados ao mar, que não querem ficar em navios de cruzeiro?
Os países em desenvolvimento, assim como os grupos dos países ricos, aguardam respostas para a próxima reunião do escritório. Inicialmente convocada para 11 de agosto, foi reagendada para o dia 14 de agosto. “Nosso desejo é ver que, depois de 14 de agosto, haverá clareza sobre como todos os países, todos os atores, toda a sociedade civil, todos os meios de comunicação, poderão dormir e participar adequadamente das discussões em Belém. Essa é a resposta que esperamos”, adianta. “Se não for assim, tem de haver uma alternativa, incluindo, naturalmente, a análise de outros locais. O Brasil tem muita experiência em sediar esses encontros e muitas opções de lugares.”
No domingo, em sua casa em Dar es Salaam, na Tanzânia, Richard Muyungi falou com exclusividade ao Valor, por telefone. Aqui o texto integral da entrevista:
Valor: O senhor pediu a reunião de emergência do Birô da UNFCCC?
Richard Muyungi: Sou vice-presidente do Birô, representando a África. Os membros podem convocar uma reunião de emergência se acharem que há algo que precisa ser abordado para o povo da sua região. A COP30 é muito importante para a África. Convoquei a reunião para que possamos compreender o que está acontecendo nos preparativos de alojamento, transporte e o bem-estar de todos em Belém. Entender como a presidência da COP30 se prepara para receber mais de 50 mil pessoas na cidade. Porque não estava claro.
Valor: O senhor conseguiu essa clareza?
Muyungi: A reunião foi muito importante e vários chairs de outros grupos regionais também queriam esclarecimentos. Primeiro, não está claro o número de quartos disponíveis em relação ao número de participantes. E quando falamos de participantes, não se trata apenas de delegados de governos, mas da mídia da África e dos países em desenvolvimento, a sociedade civil, as ONGs, os parceiros do setor privado, os representantes de grupos religiosos. Queríamos ficar satisfeitos se a acomodação será adequada. A segunda razão, fomos informados várias vezes que os quartos deveriam ser pagos antes de ir para Belém, na verdade, e você paga pelo menos 10 dias quando alocou os quartos. Na maioria dos casos, observamos que, uma vez que se paga, não se pode ser reembolsado, e tem que se pagar por não menos de 16 dias. Mas temos casos de ONGs vindo para apenas uma semana ou sociedade civil vindo para só cinco dias.
Muyungi: Outra questão que levantamos foi o fato de que os preços dos quartos nos disseram que, não custarão menos de US$ 100, mas, no mínimo, custam US$ 200. Mas a taxa diária da ONU que recebemos para uma cidade como Belém é de US$ 143. Se o preço mínimo de um quarto for de US$ 100, tem que se sobreviver com US$ 43, entre comida e transporte. Então essa era a questão. Também notamos que, até agora, o número de quartos que pudemos contar não são mais de 20 mil, mas virão pelo menos 50 mil pessoas para Belém. Portanto, não está claro como, em tão pouco tempo, vão conseguir mais quartos adicionais, ou pelo menos 20 mil.
Quando as pessoas do meu continente forem para a cama, temos que ter clareza de onde irão dormir. E alguns países africanos que não têm litoral, e se a opção for usar o navio de cruzeiro, deixamos bem claro que alguns dos países sem litoral indicaram que não desejavam estar nos navios de cruzeiro porque não estão acostumados com isso. Também perguntamos sobre o fato que ouvimos que os navios de cruzeiro estariam lá até um dia antes do encerramento da reunião. Então onde os delegados vão ficar quando os navios de cruzeiro partirem.
Valor: E as COPs nunca terminam no dia previsto.
Muyungi: Exato. Na maioria dos casos, as COPs ultrapassam um dia ou dois além do prazo. Outra questão era por qual razão alguns países da África podem pagar cerca de US$ 200 e outros, US$ 600. Mas isso não é uma divisão feita pela ONU. Queríamos entender isso. Nosso entendimento era que deveríamos usar o conceito da ONU, em função dos valores das diárias.
Valor: Uma dúvida, na carta assinada pelo senhor e outros 25 delegados, menciona-se que a diária da ONU é de US$ 164.
Muyungi: Acho que quando escrevemos a carta, alguém se enganou. Mas a taxa da ONU para a cidade de Belém é de US$ 143. A ONU acreditava que a cidade de Belém é pequena, então as pessoas que ficariam lá não gastariam tanto dinheiro. Se fosse uma cidade como Brasília ou São Paulo, as taxas são mais altas. Isso vale para os países mais pobres do mundo, na África, na América Latina e em outras partes. Por isso dizemos que os preços não podem ser esses, como as pessoas irão pagar e comer, e se movimentar?
Valor: Os preços são mais altos em Belém do que em outras cidades que abrigaram COPs?
Muyungi: Há duas questões aqui. A maioria das COPs oferecem preços variados. O problema que estamos tendo é na definição do padrão mínimo. Estamos contestando que todos têm que pagar, no mínimo US$ 100. Se alguém só tem US$ 50 para gastar por dia, esta opção tem que existir.
Valor: É correto que os chefes de três grupos de países, da África, da América Latina e das nações-ilha pediram que a COP não aconteça em Belém se esta situação não for resolvida?
Muyungi: Sim. Nosso entendimento foi esse, e confiamos que a presidência da COP30 entenda nossas preocupações, que são preocupações genuínas de todas as regiões. E até mesmo das regiões dos países desenvolvidos. Esperamos que, conforme prometido, na próxima reunião, em agosto, venham com as respostas às nossas preocupações. Mas o que é óbvio é, se os quartos não são adequados e em número suficiente, não podemos ter uma COP ali. E a questão, para nós, não é sobre quartos, mas sobre inclusão. Estamos falando de multilateralismo e não de restringi-lo ainda mais. Precisamos garantir a inclusão. E isso quer dizer mídia, sociedade civil, delegados, jovens. Portanto há que haver quartos suficientes para garantir que todos sejamos incluídos no processo e a preços acessíveis. Este é o nosso ponto central.
Valor: O senhor mencionava a importância da COP30 para a África.
Muyungi: A COP30 é muito importante para nós. São 10 anos depois do Acordo de Paris, cinco anos antes do prazo dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e temos que temos que garantir o roadmap de Baku a Belém de US$ 1,3 trilhão. Precisamos garantir que as questões relacionadas à transição justa sejam concluídas, que a meta global de adaptação seja concluída com os indicadores. Todas essas questões são muito importantes para a África. Não podemos permitir que algumas pessoas não sejam incluídas nas negociações de questões tão importantes.
Valor: Fale um pouco mais sobre a importância da COP30 para o Sul Global.
Muyungi: Estamos muito felizes em ver que a COP30 está sendo realizada no Brasil. O Brasil é um país muito conhecido por sua capacidade de unir as pessoas, há o mutirão, como vocês dizem. E para garantir que haja uma inclusão. Desde 1992, quando o Brasil sediou a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, existiram várias COPs climáticas. O Brasil é o centro da biodiversidade, o centro da silvicultura e da melhor forma de usar a floresta para nos adaptarmos às mudanças climáticas. O Brasil é o centro de quase tudo e tem essa história. Um país como o Brasil deve mostrar que os países em desenvolvimento podem hospedar uma COP desta importância e garantir a inclusão. E ela acontece em um momento em que alguns se retiraram do Acordo de Paris e, portanto, há um teste do multilateralismo, e precisamos garantir que estaremos lá.
Valor: A COP30 é um teste para o multilateralismo?
Muyungi: Sim. Para nós, os países em desenvolvimento que são muito mais afetados pelas mudanças climáticas, é um teste para mostrarmos se podemos ficar juntos e abraçar o multilateralismo. E isso só pode ser feito por meio da inclusão.
Valor: Há outros itens da agenda que o senhor considera importantes?
Muyungi: Temos que concluir os vários itens da agenda que mencionei, além de discussões sobre tecnologia e sobre os caminhos de transição justa. Para a África, por exemplo, poder ter fogões limpos (as comunidades cozinham com carvão ou lenha dentro das casas, o que causa problemas de saúde para mulheres e crianças). Temos ainda 900 milhões de pessoas sem a opção de cozinhar sem emitir gases estufa e poluição. Precisamos garantir, em Belém, que ninguém seja deixado para trás, e que as mulheres e crianças na África, que já estão sofrendo os impactos das mudanças climáticas, também possam fazer parte dos caminhos da transição justa. Essas são questões importantes para nós em Belém, e acreditamos que a presidência brasileira verá a importância da inclusão na COP30, tanto se ela ocorrer em Belém ou em outra cidade do Brasil. Mas onde o governo brasileiro, por causa de sua história, possa garantir que todos sejamos incluídos.
Valor: Outro item importante são as NDCs, os novos compromissos climáticos dos países, que devem ser apresentados até setembro. O balanço destes compromissos será feito pela ONU em outubro e já sabemos que, com todas as promessas, o limite de 1,5°C não será garantido. Pior: este balanço não será discutido na COP30, em novembro. O que o senhor acha?
Muyungi: Sim, NDCs até setembro Em seguida, haverá um relatório de síntese preparado pelo secretariado da UNFCCC. Este é um relatório muito importante e haverá um evento especial em setembro, durante a Assembleia Geral da ONU, onde vamos olhar este terceiro round das NDCs. Este balanço vai nos ajudar a entender se somos realmente uma comunidade global e o que estamos fazendo para enfrentar o desafio, e quanto mais devemos fazer. O problema que enfrentamos é que não há clareza se nós, países africanos ou quaisquer outros países em desenvolvimento, obteremos os recursos para implementar as NDCs. Nossa preocupação, nas NDCs dos países africanos e em desenvolvimento, não é o nível de ambição dos compromissos, mas se haverá recursos para implementá-las.
Valor: Está tudo conectado.
Valor: A próxima reunião do bureau será dia 11, certo? Ali se espera que o governo brasileiro traga soluções para todas as questões que vocês levantaram?
Muyungi: Sim. Foi reagendada para o dia 14 de agosto. Veja, levantamos :muitas questões. Algumas das soluções foram dadas. Por exemplo, a questão da subdivisão da África em dois grupos foi resolvida. A presidência brasileira disse que vai abortar essa ideia. Algumas respostas nos foram dadas, mas há tantas perguntas. O que eu prevejo é que, assim que obtivermos as respostas, veremos se haverá inclusão. Nosso desejo é ver que depois de 14 de agosto haverá clareza sobre como todos os países, todos os atores, toda a sociedade civil, todos os meios de comunicação, poderão dormir e participar adequadamente das discussões em Belém. Essa é a resposta que esperamos. Se não, tem de haver uma alternativa, incluindo, naturalmente, a análise de outros locais. O Brasil é muito rico em termos de sediar esses encontros, e vocês têm muitas opções de lugares.
Valor: O senhor acha que dividir o evento é uma solução?
Muyungi: Dividir a COP não é a melhor opção, porque para alguns de nós será impossível viajar de uma cidade para outra, a menos que se tenha a opção de mover a COP30 para outro lugar. Mas nossa melhor aposta seria uma opção que garantisse acomodação adequada a todos. Agora, se essa opção é Belém, ou outro lugar, eu não sei dizer.
Acreditamos que a COP30 é extremamente importante e confiamos no Brasil para sediar eventos tão grandes. Acreditamos na inclusão, e este é o nosso ponto central. E acreditamos que, levando isso em consideração, o governo brasileiro fará a melhor escolha para garantir a inclusão. Estar no Brasil, para nós, é algo que nos alegra e acreditamos que o Brasil também entende as necessidades da África.
Valor: Hoje, com todas as tensões geopolíticas no mundo, quais as chances de a COP30 ter sucesso?
Muyungi: Acredito que temos uma chance de seguir em frente. Nós passamos por esses desafios cíclicos ao longo dos 30 anos da COP. No contexto dos desafios das mudanças climáticas, que estão aumentando, a única opção para muitos de nós, países em desenvolvimento já altamente impactados pelas mudanças climáticas, o multilateralismo é a melhor opção. E acreditamos que o teste do multilateralismo vai acontecer no Brasil, em Belém. E é por isso que, se todos fizermos parte do processo, haverá sucesso.