Lockheed Martin/Gary Tice
O famoso Concorde, que cruzava o Atlântico em pouco mais de três horas, foi durante décadas o símbolo máximo da aviação supersônica.
Mas também se tornou sinônimo de excessos: bilhetes caríssimos, alto consumo de combustível e, sobretudo, o estrondo ensurdecedor que fez países proibirem voos acima de Mach 1 sobre áreas habitadas.
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ENTENDA: Mach 1 é o nome dado à velocidade do som. Em condições normais, isso equivale a cerca de 1.235 km/h.
O jato franco-britânico voava quase sempre sobre o oceano, mas mesmo assim foi retirado de operação em 2003, selando o fim da era do supersônico.
Duas décadas depois, a NASA, a agência espacial norte-americana agora aposta em um caminho diferente.
Com o X-59 QueSST, um avião de linhas finas e nariz alongado, a agência norte-americana não quer repetir a saga comercial do Concorde, mas resolver o problema que barrou o voo supersônico sobre cidades: o barulho.
Isso porque o modelo foi projetado para voar acima da velocidade do som sem causar o estrondo típico dos supersônicos. Seu nariz alongado, asas inclinadas e motor no topo espalham as ondas de choque, que chegam ao solo como um leve “baque”, parecido com o som de uma porta de carro se fechando.
O projeto acaba de passar da fase de fabricação e testes em solo e passa para o primeiro ciclo de voos experimentais ainda este ano, que começam na Califórnia.
“Chamar o X-59 de ‘filho do Concorde’ distorce e minimiza o propósito da missão”, diz ao g1 Peter Coen, gerente de integração da missão Quesst.
Para ele, a comparação não se sustenta: “O Concorde foi um jato comercial de primeira geração, marcado por um boom sonoro intenso. O X-59, por sua vez, é uma aeronave de pesquisa projetada para enfrentar o desafio do ruído. Em vez de um estrondo, ele produz um baque que lembra mais um trovão distante.”
Por isso, a aposta é que esse som, descrito pela NASA como um “sussurro supersônico”, seja tolerável para comunidades inteiras.
Para provar isso, o projeto inicia em breve uma fase decisiva: os primeiros voos de teste.
A NASA não divulgou uma data específica, mas nesse momento, eles devem acontecer nas redondezas do Armstrong Flight Research Center, centro da NASA dedicado a pesquisas de voo que fica na Base Aérea Edwards, uma instalação no deserto da Califórnia, conhecida por ser palco de grandes marcos da aviação, como o primeiro voo supersônico do mundo.
Ali, o espaço aéreo amplo e controlado oferece segurança para ensaios experimentais do tipo.
Somente depois dessa fase em ambiente controlado é que o X-59 passará a sobrevoar cidades selecionadas pela NASA.
E a escolha desses locais não é aleatória: a agência quer testar diferentes cenários urbanos para entender como o som se espalha em condições reais, entre prédios, casas e áreas abertas.
Nessas comunidades, os voos acontecerão em horários programados, previamente comunicados aos moradores, para que todos saibam quando a aeronave passará.
Ao todo, Coen explica que a experiência terá dois eixos principais. De um lado, a percepção humana: moradores serão convidados a relatar como sentiram o barulho, se ele incomodou ou se soou apenas como um trovão distante.
De outro, a medição técnica: sensores instalados em vários pontos do solo vão registrar com precisão a intensidade e a propagação do ruído.
Com isso, a NASA afirma que quer reunir um retrato fiel de como é a experiência de viver sob a passagem de um avião supersônico que promete ser silencioso.
“É voando sobre comunidades que reuniremos os dados que são a meta da missão”, explica o também engenheiro aeroespacial e piloto.
A porta que a Nasa quer abrir
Coen garante que todos esses dados não vão ficar restritos à NASA.
A intenção da agência, segundo ele, é tornar as informações públicas, de modo que autoridades como a Administração Federal de Aviação (FAA, na sigla em inglês), nos Estados Unidos, e organismos internacionais de aviação civil possam avaliar os novos padrões.
Hoje, os supersônicos são proibidos de ultrapassar a velocidade do som sobre áreas povoadas.
Assim, se a missão Quesst tiver sucesso, esse limite pode ser trocado por uma regra inédita: em vez de velocidade máxima, um limite de ruído aceitável.
O próprio nome da missão ajuda a entender esse objetivo: Quesst é a sigla em inglês para Quiet SuperSonic Technology, algo como “tecnologia supersônica silenciosa”.
E essa é a “porta” que a NASA pretende abrir: um novo marco regulatório que permita que fabricantes privados desenvolvam jatos viáveis sem repetir os erros do passado.
A comparação com o Concorde, contudo, ajuda nesse ponto a entender o que está em jogo.
O supersônico comercial dos anos 1970 foi uma façanha tecnológica, mas também um fracasso econômico: consumia combustível em excesso, tinha manutenção complexa e nunca conseguiu se expandir para além de uma elite de rotas.
O X-59, por outro lado, não transportará passageiros nem servirá a companhias aéreas.
Ele foi concebido como uma ferramenta científica de convencimento político: provar, com dados objetivos e com a percepção real de comunidades, que o voo supersônico sobre terra pode ser seguro, eficiente e tolerável.
Coen lembra que o ruído é apenas uma parte do quebra-cabeça. “A pesquisa da NASA mira três grupos de barreiras”, afirma.
“Ambientais, que incluem não só o boom, mas também o ruído de aeroportos e as emissões em solo e em altitude. De eficiência, como o alto consumo de combustível, o peso e a complexidade de manutenção. E operacionais, que envolvem a integração desses aviões ao espaço aéreo ocupado por jatos comerciais subsônicos, além da necessidade de novas regulações claras”.